A gente foi feliz aqui

Os muros que sobraram das casas destruídas em Maceió ainda contam histórias de quem viveu ali

Paula Rodrigues

do UOL, em São Paulo (SP)

Quando as primeiras rachaduras apareceram nas paredes, os moradores do bairro do Pinheiro, em Maceió, não deram muita bola. Acreditavam ser apenas um problema comum.

Agora, quase dez anos depois, essas residências não existem mais. Viraram memórias do maior desastre ambiental urbano em curso do Brasil, causado pela exploração de minas da Braskem - empresa petroquímica que nega a responsabilidade, mas que desde 2020 já pagou R$ 9,2 bilhões por danos aos moradores e ao poder público.

Na tentativa de registrar as histórias de quem precisou abandonar a vida que tinha no bairro, o artista visual Paulo Accioly, que também vivia no Pinheiro, decidiu chamar atenção para o problema colando nas casas destruídas grandes lambe-lambes com fotos de moradores que foram evacuados.

Assim, nasceu o projeto "A gente foi feliz aqui". E estas são algumas das histórias que o artista registrou no meio do desastre:

"A gente deixava o filho com o vizinho, cuidava do filho dos outros... Era uma comunidade, uma família.

Uma das maiores perdas de todo o acontecido não são as casas, mas as relações que existiam entre as pessoas do mesmo prédio, da mesma rua.

Essas relações se perdem de uma forma que não tem dinheiro no mundo que pague. O ser humano é um ser social. Quando você destrói esses vínculos, o que você se torna? O que nós somos sem essa comunidade?"

Paulo Accioly

Dona Eliliett

"As pessoas aí eu conheço tudinho. Vi Áurea quando chegou aqui, ainda não tava nem grávida do Ícaro. É toda uma vida aqui.

Hoje, por causa dessa bixiga dessa empresa, praticamente expulsando todos nós daqui...Porque o culpado disso tudinho é ela e o governo, né? Fazer o quê?
Tô com a casa alugada já. Quando meu marido alugou eu vi pelas fotos e depois disse: 'vamo lá ver'.

Eu fui, olhei e saí de lá chorando."

A conversa com dona Eliliett foi uma das que mais pesou para Paulo. Ele conta que ela estava muito serena, muito tranquila, enquanto relembrava dos vizinhos que perdeu de forma trágica:


"Ela apontou pra um prédio e falou: 'Paulo, aquela janela ali, um cara pulou', 'aquela outra ali, coitada, a mulher foi internada com problema na cabeça', 'outro que morava ali se matou no banheiro'. Meio que se despedindo dos amigos que ela teve a vida inteira ali."

Pra muitos, era melhor morrer do que perder a vida que eles construíram ali. Paulo Accioly

Heitor

"Eu moro lá na casa de onde a gente teve que sair desde que eu me entendo por gente. Nessa casa eu conhecia os vizinhos, tinha um menino que brincava bastante comigo, vizinho da minha casa.

Era perto do mercadinho, da igreja. Tinha um ônibus que passava lá na frente que ia pra minha escola. O motorista já me conhecia, ele parava na frente da minha casa pra me pegar quando me via saindo.

É muito triste isso da pessoa ter que sair assim, inesperadamente. Mas é... não tem muito o que fazer mesmo."

Márcia


"Meu pai chegou no Pinheiro em 1971, mais propriamente no conjunto Jardim Acácia, que eram somente alguns prédios rodeados de sítios, sem saneamento básico, sem estrutura alguma. Mas aquele era o bem da família, o local que iria abrigar seus 8 filhos.


Não chegou a ver o bairro se desenvolver, o comércio local crescer... Morreu cedo, na sala do nosso apartamento, em 1977. E aquele lugar se tornou mais que uma casa, era nossa relíquia, herança da família, pois cada cantinho lembrava ele."

'A gente foi feliz aqui', essa frase estava pichada em uma das casas. Quando os moradores saiam, eles deixavam essas mensagens de despedida. E o bairro se tornou uma galeria a céu aberto de saudades. Paulo Accioly

Kamyla


"É um sentimento que eu tentei negar, essa minha despedida. Ela acabou vindo em forma de pesadelo, acordava assustada, eu sonhava muito com o apartamento: as cores, o cheiro da casa, a iluminação, a decoração.

Até que eu realmente precisei acordar, sentir isso, me permitir sentir essa dor que não tem como ser negada. Eu perdi minha casa. Não tem como fingir que não tá acontecendo."

"Esta é a família da Kamyla, que durante uns 7, 8 meses já fora da casa, ainda ia lá todo domingo. Já não tinha porta, tava tudo quebrado, mas eles iam, varriam, limpavam, ajeitavam o apartamento, levavam uma churrasqueira e faziam churrasco lá porque eles não conseguiam romper esse laço."
Paulo Accioly

Duda

"A gente já foi MUITO feliz aqui! Foram tantas fotos de primeiro dia de aula, tantas descobertas, brincadeiras, festas de aniversário, almoços antes do colégio e muito bolo de queijo!"

Áurea

"Nós moramos 22 anos naquele bloco. Depois de 5 anos eu engravidei do Ícaro. Ali ele foi educado, alfabetizado, foi pro colégio, passou no vestibular.

Saudade imensa do pátio cheio de criança brincando? Falar de Buriti é família, são os amigos, as crianças que a gente viu na barriga, viu nascer, crescer, se formar, né?

E hoje você vê todo mundo distante, não tem mais essa proximidade, né? Buriti era você saber as datas dos aniversários dos vizinhos e saber que naquele dia tinha nem que fosse um bolinho pra gente bater os parabéns e tomar com uma coca cola, bater um papozin...

E é isso, saudades."

A história da família da Áurea foi mais uma que pegou Paulo de surpresa. O marido morou a vida inteira no Pinheiro, foi o segundo morador deste prédio verde e amarelo. E só durante a colagem da foto, ele conseguiu colocar para fora o que sentia e finalmente chorou.

"Ele disse: 'Paulo, eu nunca consegui me emocionar, nunca consegui realizar o que estava acontecendo, saber que a gente não volta mais aqui, que eu nunca mais vou pisar nessa rua...'"

Maria Corá sobre Keka, a cadelinha da família

"Quando a gente se mudou, aconteceu de ela ficar sem lugar. Hoje a gente fica medindo o sol que aparece, aí é uma competição entre a cadela, a roupa e as plantas por ele.

Ela fica o tempo todo em casa embaixo das camas quando não tá brincando com a gente.

Foi uma opção que eu tive, poderia doar, poderia deixar ela lá, mas preferi ficar com ela.

Ela é minha, ela é minha responsabilidade, ela é minha filha."

Andrea

"Hoje nosso sonho foi literalmente para o chão e nos sentimos de mãos atadas diante da ausência de quem poderia nos ajudar. Seguimos confiantes nos desígnios de Deus para nossa vida."

A gente foi feliz aqui

Reportagem: Paula Rodrigues
Edição: Eduardo Burckhardt

*

Publicado em 14 de dezembro de 2023.